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Professores relatam censura em colégios militares


Educadores de escolas do Exército pelo país afirmaram que foram orientados a não abordar temas como homofobia, racismo e gênero


Por Rute Pina, da Agência Pública*


Em fevereiro de 2019, o então comandante do Colégio Militar de Porto Alegre coronel Claudio Faulstich reuniu cerca de 200 funcionários em um auditório da escola para um anúncio: a partir daquele momento, alguns temas estavam proibidos em sala de aula. Entre os assuntos vetados, o militar citou explicitamente as palavras homofobia e racismo.


“Ele procurou minimizar a interferência dele e disse que era uma ordem superior, da Depa [Diretoria de Educação Preparatória e Assistencial, departamento do Exército]. Mas, em tom ameaçador, disse que se alguém tentasse contrariar essas normas poderia sofrer consequências”, relata o professor Rafael*, que pediu anonimato por medo de represálias, como a maioria de seus colegas que conversou com a reportagem da Agência Pública.


O que surpreendeu Rafael não foi a interferência no conteúdo das aulas. O professor, que trabalha no sistema de colégios militares há mais de dez anos, conta que já havia recebido orientações por escrito para alterar provas com questões envolvendo política, “para evitar propaganda partidária”. O educador se espantou com o encontro para divulgar normas até então implícitas. A situação anormal fez parte dos professores enviar uma carta de repúdio ao comandante duas semanas após o episódio.


“As coisas se tornaram mais abertas, como, por exemplo, fazer uma reunião com todos os profissionais de ensino para falar uma coisa que sempre se praticou de forma velada. Isso me pareceu uma posição de ataque mais explícito. Antigamente, a perseguição era mais individual. Mas chegamos a esse nível em que há abertura para dizer em um salão: ‘Agora é assim’”, analisa o professor.


O relato de Rafael se soma a uma dezena de outras entrevistas que a Pública fez com professores civis do sistema de colégios militares em Recife, Rio de Janeiro, Distrito Federal e Porto Alegre. Os educadores relataram “censura” e “intervenção nos conteúdos” nas salas de aula das 14 instituições de ensino regular gerenciadas pelo Exército – e vistas como modelo de ensino pelo presidente Jair Bolsonaro.


Os colégios militares integram o Departamento de Educação e Cultura do Exército (Decex), mas não preparam para a carreira militar. São escolas de ensino regular, do fundamental II ao médio. Na sua maioria os estudantes são dependentes de militares, que sofrem os reflexos das obrigações profissionais dos pais em razão das peculiaridades da carreira. Já as vagas remanescentes são abertas ao público por meio de concursos. O primeiro colégio militar foi fundado no Rio de Janeiro em 1889. O mais recente, localizado em São Paulo, foi inaugurado este ano.


A proibição de abordar feminismo e gênero, citar programas de governos anteriores, como o Minha Casa Minha Vida ou Bolsa Família, debater a existência de racismo no Brasil ou fazer analogias com discussões recentes do noticiário foram alguns dos episódios relatados pelos professores ao mencionar o aumento do conservadorismo e da influência de discursos do Escola Sem Partido na administração dos colégios militares, mantidos com orçamento do Ministério da Defesa. O movimento Escola Sem Partido defende o fim do que chamam de “doutrinação ideológica” nas escolas e repreende debates como a igualdade de gênero nas salas de aula.


Além disso, os profissionais relataram assédio a professores que questionaram o retorno às aulas presenciais, após seis meses de ensino remoto por causa do isolamento, em cidades que ainda têm número de casos elevados de Covid-19.


O professor Antônio Araújo Jr. dá aulas de biologia no Colégio Militar de Brasília desde 2015. Ele afirma que o projeto pedagógico do colégio “sempre foi simpático às Forças Armadas”, principalmente em disciplinas como história ou português, mas observa que as interferências aos conteúdos lecionados se intensificaram – e passaram a atingir, inclusive, as áreas de exatas e biológicas.


“Eu achava que tinha liberdade porque era visto como professor de uma área técnica. Aquela ideia positivista de que a ciência é neutra. Minhas aulas sobre sexo, reprodução, sexualidade aconteciam sem controle”, relata o professor. “A postura negacionista e anticientífica ficava restrita a alguns temas das disciplinas de humanas.”


Os docentes entrevistados disseram que devem entregar, para análise, com pelo menos um mês de antecedência as provas que serão aplicadas aos alunos. Essa análise é registrada num documento chamado “processo de prova”, em que constam os comentários de todos os envolvidos na elaboração da atividade.


A primeira vez que Antônio viu uma interferência ideológica em uma prova que não de disciplinas como redação ou história foi em meados de 2016, quando o comando do colégio mandou uma equipe refazer uma avaliação de química porque uma questão trazia a fórmula da cocaína. “Eles disseram que isso poderia ser entendido pelos pais como um incentivo ao uso de drogas ou mesmo à produção de drogas”, lembra. “Na época, a gente chegou a rir disso porque era como se o comandante tivesse só entendido ‘fórmula’ como uma ‘receita’ para preparar alguma coisa. Mas a gente não percebeu que ali já estava uma espécie de articulação com o princípio ideológico do movimento Escola Sem Partido, que já estava começando a ganhar força.”


Os casos, segundo o professor, deixaram de ser pontuais. Ele se lembra de uma questão de biologia em que contextualizou processos hormonais do corpo humano, como o estímulo ao sistema nervoso que faz o coração bater mais rápido quando se vê uma pessoa atraente e aumento de hormônios durante a gravidez, contando a história de um casal desde que se conheceu até quando teve um filho. A prova, entregue para aprovação do colégio com antecedência de cerca de um mês, foi vetada. “O comando disse que poderia dar a impressão de que estamos ensinando os alunos a namorarem. E a escola era contra o namoro na adolescência.” (...)


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