Por contraste, dimensão civilizatória dos governos do PT fica cada vez mais forte
"O erro do PT foi respeitar a população mais pobre com a habitual imensidão de amor que faz pulsar o coração de Lula. Foi salvar vidas combatendo a fome dos homens e o fogo das florestas. Foi dar ao país o que ele jamais teve, a soberania de uma potência investida de profunda autoestima - mas com graça e delicadeza", diz o linguista Gustavo Conde
Por Gustavo Conde*
Como diz o meu amigo Wilson Ramos Filho, o Xixo, o excesso de poder a procuradores e juízes - atribuído pela Constituição de 88 - acabou com o país.
O PT governou tão bem que a oposição no plano nacional foi terceirizada para o Ministério Público e para o Poder Judiciário.
Alguém já teve a curiosidade de se perguntar por que a oposição morreu durante os governos Lula e Dilma, tornando-se essa abominação tucano-fascista que levou Bolsonaro ao poder, já nos idos de 2015?
É porque fazer oposição a um governo que governa para o povo e se comunica diretamente com o povo é difícil.
Poupem-me os intelectuais de cativeiro que ruminam dia sim dia não que o PT não "soube se comunicar" e/ou "não soube politizar a população".
Se o PT não soubesse se comunicar teria ganho 4 eleições seguidas e sido segundo colocado em TODAS as outras eleições majoritárias pós-ditadura?
Poupem-me.
Os intelectuais brasileiros não subservientes estão, de uma maneira ou de outra, associados ao PT, com raras exceções.
Nós - todos nós - ainda estamos em pleno trauma fóbico de ver o PT como origem de tudo, como explicação final de nossa interrupção enquanto sociedade, tal o grau de ataques vulgares que o partido recebeu desde sua fundação.
A exceção do povo nordestino - que em função do sofrimento pessoal sabe valorizar a democracia - o conjunto da sociedade brasileira não soube retribuir o amor que recebeu do Partido dos Trabalhadores durante quase 40 anos.
O PT é uma extensão da generosidade estrutural de Lula. Não há partido no mundo que tenha essa característica: representar o espírito radicalmente democrático de um líder fundador que sabe perder, sabe vencer e sabe o valor conceitual da alternância de poder como poucos.
O PT é Lula e Lula é o PT.
Que nós tenhamos uma cifra de soberania intelectual para entender isso.
E dizer que o PT é Lula não é ser personalista como os jornalistas de cativeiro (o zoológico é grande) costumam postular dentro das suas caixinhas semânticas de curto alcance.
Dizer que Lula é o PT é justamente o contrário. É entender a dimensão afetiva a e humana deste partido que jamais considerou a hipótese de "brincar" com a democracia.
Lula perdeu três eleições e soube legitimar o vencedor sem interferir de maneira disruptiva no processo democrático. É a maior lição de democracia da história do país.
Lula recusou um terceiro mandato que lhe era oferecido quase todos os dias por congressistas que não tinham clareza sobre o significado de democracia e alternância de poder.
Lula também deu essa aula.
Esses intelectuais de cativeiro que dizem que o "PT não soube se comunicar com a sociedade" queriam, na verdade, que o PT se comunicasse com a elite, com o sistema.
Eu lembro de um ex-ministro de Dilma dizendo, depois do golpe, que ela "não teve jogo de cintura". Jogo de cintura para quê, cara pálida?
Falar depois é fácil. É tão fácil que chega a ser degradante.
Há muita gente inconformada, do alto de seus sofás, formulando a hipótese de que essa aberração fascista que se apoderou da nossa falecida democracia "é culpa do PT". Que se o PT soubesse "conduzir" uma negociação com o Congresso nada disso estaria acontecendo.
Alguns dizem ainda que a polarização do país também é "culpa do PT".
Precisa comentar? Alguém já viu um grupo de políticos milicianos mais boçal, radical e ideológico do que este que nos envergonha diariamente diante do mundo?
Este horror é e sempre será um horror a ser exorcizado de nossas vidas. Bolsonaro é toda a vilania da Terra acumulada em um único ser (anti) humano.
O PT, por sua vez, continua representando o ponto fora da curva no sistema político brasileiro, sistema este apartado da sociedade real por definição.
O sistema político brasileiro é um clube que não aceita a democracia como sócia.
O PT humanizou esse clube. Arrombou a porta e ensinou um pouco de democracia para cada um desses sócios deitados em berço esplêndido.
Alguns aprenderam, outros (a maioria) não.
É por isso que o PT continua forte, latejando no imaginário brasileiro como o elemento ainda não codificado por nossa brutalidade cognitiva.
É por isso que o PT não trunca processos com violência, nem mesmo processos de golpe e de fraude.
Esse traço até dói um pouco, haja vista o estado de calamidade em que mergulhou o país pós PT.
Mas é o "raciocínio Lula": eu não troco minha dignidade por minha liberdade da mesma maneira que eu não troco a minha dignidade pelo poder.
É a monumentalidade de caráter insuportável para a nossa elite acomodada na mediocridade do seu passado violento.
Essa elite não tem estrutura psíquica para suportar a delicadeza de um gesto político dotado de caráter e generosidade.
Sempre foi assim.
O erro do PT foi ser verdadeiro demais. Foi não mentir. Foi administrar crises com transparência. Foi lutar contra o sistema mesmo fazendo parte do sistema (a autocrítica do sistema). Foi respeitar as instituições. Foi respeitar a liberdade de expressão. Foi governar o país pensando no país (e não na própria perpetuação no poder).
Foi respeitar a população mais pobre com a habitual imensidão de amor que faz pulsar o coração de Lula. Foi salvar vidas combatendo a fome dos homens e o fogo das florestas. Foi dar ao país o que ele jamais teve, a soberania de uma potência investida de profunda autoestima - mas com graça e delicadeza.
O "trauma PT" ainda nos assombra. Ele é sintoma da profunda transformação que este partido conferiu à estrutura subjetiva de todo nós, cidadãos e sujeitos da história. Assimilar isso não é fácil - e negar isso leva à histeria.
A rigor, viver a sociedade brasileira sob o PT nos cegou com relação ao próprio PT - ainda que o tenhamos reconduzido por décadas ao protagonismo político.
A ironia é que essa devastação leva cada vez mais gente a procurar entender o que realmente aconteceu ao país durante nosso apogeu democrático, entre os anos de 2003 e 2016.
A história pode ser desacelerada, mas não pode ser aniquilada. O balanço deste período está em curso e é muito mais poderoso do que as linhas acima podem dar a entender.
Ministério Público, imprensa, STF, Forças Armadas, intelectuais, todos têm um encontro marcado com a autocrítica e com a conta histórica da destruição assistida.
Nossa reconciliação com a civilização passa pela reconciliação com o partido que mais soube respeitar a democracia e a soberania brasileira, sem medo de debater e sem medo de ser feliz.
*Gustavo Conde é mestre em linguística pela Unicamp, editor e colunista do Brasil 247 (fonte desta postagem).