Mandela, Lula e a hipocrisia
Por Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)
Há duas semanas, quando o mundo evocava a figura extraordinária de Nelson Mandela, a propósito do transcurso do centenário de seu nascimento, Luiz Inácio da Silva permanecia, como ainda permanece preso no xadrez da sede da Polícia Federal em Curitiba – onde cumpre provisoriamente a pena que lhe foi imposta no kafkiano caso do apartamento, que não é seu, mas que lhe foi “atribuído”; e não por qualquer ato passível de configurar corrupção, mas por “fato indeterminado”, que seu implacável julgador (ou seria melhor dizer, acusador?) não foi capaz de apontar, quanto mais de provar.
Lá, em seu retiro forçado, em meio às leituras e exercícios que o mantém vivo e ativo, pode ter pensado, amargamente, nas semelhanças e diferenças entre as histórias, ambas notáveis e incomuns – a sua e a do grande líder sul-africano, com o qual manteve relação amigável. Trajetórias tão díspares, em circunstâncias temporais e espaciais tão diversas, de personagens tão diferentes – e que, no entanto, convergem em muitos pontos, e os colocam, lado a lado, como símbolos supremos da luta pela emancipação de seus respectivos povos.
“Madiba” pertencia à linhagem nobre de sua tribo, teve educação formal que o distinguia entre seus conterrâneos, e desde jovem, como advogado, empenhou-se no combate ao odioso regime do “apartheid” – instituído na África do Sul pelos “afrikaners”, herdeiros diretos dos colonizadores ingleses e dos colonos filhos de holandeses, os “boers”, que se rebelaram no começo do século XX contra o domínio britânico. Regime este que, vale dizer, à semelhança daquele que vigorou em vários estados do sul dos Estados Unidos, consagrava legalmente a sub-cidadania da enorme maioria negra da população daquele país, proibida de frequentar os mesmos lugares, até a mesma calçada (!?), e de usufruir os direitos reservados à minoria branca dominadora. Chegou-se ao cúmulo de considerar crime a relação sexual entre pessoas de raças diferentes!
Comunista que era (condição que manteve toda a vida, embora convenientemente esquecida por muitos que hoje o celebram), admirador da luta e das obras de Mao, Mandela foi militante e dirigente do Congresso Nacional Africano, o CNA, partido tido como “terrorista” pelo governo racista – ao qual ele passou a combater na clandestinidade. Tendo sido preso em 1962, foi torturado e condenado, sem defesa justa, à prisão perpétua, cumprindo pena privativa de liberdade ao longo de vinte e sete anos, a maior parte do tempo na Ilha de Robben, situada a onze quilômetros da costa da Cidade do Cabo, em presídio construído especialmente para manter reclusos os perseguidos políticos de seu país – vale dizer, os que, como ele, se levantaram contra o jugo criminoso imposto à parcela massivamente majoritária do povo sul-africano.
Mercê de sua resistência heróica, da permanente mobilização de sua gente – de que foram eloqüentes símbolos os levantes de “Soweto”, o grande bairro de Johannesburgo – e de forte pressão internacional, foi libertado em 1990, passando desde então a conduzir o processo político que levou à democratização do país, e que teve como grande marco inicial sua eleição à Presidência da República, com quase dois terços dos votos, em 1994, mais de trinta anos depois de ter sido preso.
Já o menino pobre, nascido em Garanhuns, percorreu caminhos diversos, bem conhecidos pelo povo brasileiro. Graças à fibra e coragem (traços marcantes da brava gente nordestina) da mãe – a qual, depois de abandonada pelo companheiro, veio para São Paulo, com os filhos ainda pequenos – um deles, Lula, como foi sempre chamado, depois de ter trabalhado desde criança, finalmente conseguiu empregar-se como metalúrgico, formando-se como torneiro mecânico, condição que o orgulha até hoje. E foi como sindicalista, liderando o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, em plena ditadura, na segunda metade da década de 1970, que sua vida se transformou completamente.
Com efeito, sob sua liderança firme, mas sensata, conduziu as campanhas memoráveis de então, que incluíram até mesmo a realização de greve – repita-se, sob a vigência do regime ditatorial, que a proibia e considerava crime. Dali emergiu, não apenas um novo tipo de sindicalismo, mas também um partido de feições absolutamente inéditas na história política de nosso país: o Partido dos Trabalhadores (PT), criação de muitos, por certo, mas inspirada diretamente por Lula e seus companheiros.
Também é notório que, depois de ter-se entregado, ao longo de toda a década seguinte, à construção da nova agremiação, inclusive como deputado constituinte, Luiz Inácio disputou a primeira eleição presidencial do novo período democrático, em 1989 – perdendo-a, por pouco, no segundo turno, graças às manipulações dos poderosos grupos midiáticos, os quais, à época e ainda hoje, atuam como verdadeiros partidos políticos das oligarquias dominantes. Sabido, igualmente, que nos dois pleitos presidenciais seguintes, em 1994 e em 1998, novamente se apresentou, sempre defendendo as bandeiras das esquerdas – e sendo novamente derrotado, nas duas ocasiões.
A situação mudou em 2002: convencido de que, dada a correlação de forças existente, não tinha condições de vencer com a agenda política que representara nas oportunidades anteriores, com o acordo da maioria de seus partidários, Lula aliou-se a setores de centro-direita, obtendo por conseguinte consagradora vitória eleitoral – repetida quatro anos depois, com sua reeleição; e também em 2010, com a vitória da sucessora que indicou, Dilma Roussef.
Não é o caso, aqui, de discutir os erros e acertos da estratégia adotada para levar ao Palácio do Planalto o maior líder popular do Brasil, legítimo representante da maioria esmagadora de seu povo. Aos propósitos desse artigo interessa destacar que, inegavelmente, nos catorze anos de governos petistas, sob a inspiração e liderança de Lula da Silva, foi levado a cabo o maior projeto de inclusão social até então realizado no país: em virtude da constante recuperação do valor real do salário mínimo; das políticas de transferência de renda, sob as condicionantes de saúde e educação; da criação de centenas de institutos federais, e de dezenas de universidades públicas; da ampliação notável das vagas no ensino fundamental e médio – entre inúmeras outras medidas – algumas dezenas de milhões de pessoas saíram da miséria, para níveis de pobreza digna; e desta, para padrões de vida de classe média.
Apesar disso – ou, melhor dizendo, por isso mesmo – desde 2011, pelo menos, as classes dominantes e seus prepostos do mundo da política, da mídia e do sistema de justiça, articularam e executaram, exitosamente, manobras destinadas, tanto a remover os petistas do governo federal, como a impedir o retorno de sua maior liderança, desejo expresso da maioria da população. Daí as farsas do “impeachment” de Dilma, sem crime de responsabilidade; e dos processos criminais contra Lula, sem crime de corrupção.
Importa salientar, neste passo, o sentido inverso dos percursos efetuados por Mandela e Lula – aquele, da prisão, à grande reconciliação nacional; e este, do processo conciliatório bem sucedido, à cadeia… Quanta ironia histórica, nestes dois itinerários: ambos perceberam, depois de madura reflexão sobre os revezes sofridos, que sem conciliar, ao menos com parte das elites perversas, responsáveis há séculos pela dominação de seus povos, não seria possível empreender as tarefas de superar ou, ao menos, mitigar seus efeitos nocivos.
Ademais, as situações vividas, por um e outro, embora diferentes, são indelevelmente marcadas pela mesma e profunda hipocrisia de seus adversários. Mandela, depois de décadas de tratamento como terrorista, foi louvado pelos antigos detratores, quando conduziu a pacificação de seu país, e também ao morrer. Aliás, quando de sua morte, a revista semanal mais vendida no Brasil, dedicou-lhe a capa e uma laudatória matéria central – malgrado a empresa jornalística à qual pertence tenha, há anos, expressiva participação acionária do principal grupo midiático sul-africano, defensor e beneficiário do “apartheid”…
Não menos hipócritas são os algozes de Lula, integrantes das tais instituições “republicanas”, os quais receberam, nos seus governos, a autonomia de que nunca desfrutaram antes, e que, sem qualquer pejo, colocaram seus poderes a serviço dos dominadores, de hoje e de sempre.
(*) Defensor Público aposentado, coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014).
Fonte: Sul21 - Foto: Ricardo Stuckert