A bela Adormecida
O alarmismo político dos generais, a “cura gay” e a escola sem partido: o que isso tem a ver com seus direitos
Por Eugênio José Guilherme de Aragão*
A pasmaceira que tomou conta de boa parte da sociedade civil brasileira se assemelha a um sono de Bela-Adormecida: caiu no feitiço de uma fada má e insiste em esperar o príncipe encantado em 2018, para trazê-la de volta a um mundo florido e maravilhoso, típico das estórias infantis.
Enquanto isso, as forças da reação autoritária e intolerante correm lépidas e fagueiras a destruir o Estado democrático de Direito ancorado na Constituição de 1988. Parlamentares que apoiaram o golpe e se empenham na desnacionalização dos mais nobres ativos do Brasil, juízes para lá de sem compromisso com os direitos dos mais vulneráveis, membros do ministério público ávidos pelas luzes da ribalta, numa verdadeira corrida de Amok para afundar a indústria da construção civil e policiais a serviço do que há de mais atrasado, reprimindo seletivamente movimentos de protestos contra o obscurantismo, como professores que distribuíam panfletos contra o tal “Escola sem Partido” – todos parecem atuar concertadamente para catapultar o Brasil de volta à escravocracia.
E o tenor é dado por organizações brigonas de atores raivosos, a exigirem a censura contra exposições de arte que qualificam de “degenerada”, em São Paulo e Porto Alegre. Outras arrogantemente se acham no direito de discriminar concidadãs e concidadãos por sua opção sexual, tachando-as e tachando-os de doentes.
Bem-vindos ao Brasil do ódio e do preconceito, da perseguição discriminatória e do falso-moralismo. Adolf Hitler não faria melhor estimulando a destruição do que chamava “entartete Kunst” e impondo a internação de pessoas homoafetivas em campos de concentração.
Fato especialmente preocupante é, porém, o recente rebuliço no generalato do Exército. Pensávamos, todos, que nossos soldados tinham se profissionalizado ao longo da última década. Tudo foi feito para isso. Receberam intenso treinamento em direito internacional humanitário, engajaram-se mundo afora em missões da ONU em situações de emergência humanitária, mantiveram intensos contatos com colegas de farda de democracias consolidadas e empenharam-se em missões nobres de suporte às debilidades do Estado brasileiro, seja na segurança pública, seja na fiscalização de fronteiras, seja em construção e recuperação de estradas, seja no socorro a vítimas de enchentes. Em todas essas tarefas, as Forças Armadas se houveram como braço indispensável do Estado democrático de Direito e foram motivo de orgulho dos brasileiros, pelo espírito público, pelo denodo altruísta das mulheres e dos homens se farda.
Esse progresso institucional das Forças Armadas não combina com o recente discurso ameaçador de alguns oficiais-generais contra a política e contra o judiciário. Ninguém deixa de dar-lhes razão ao expressarem sua preocupação com o desmanche da governabilidade no Brasil depois do golpe parlamentar que destituiu a Presidenta Dilma Rousseff.
Como brasileiros, é legítimo soldados se posicionarem. Seria mais legítimo ainda se deixassem clara sua indignação contra a entrega de ativos estratégicos nacionais, contra a perda de liderança no mundo global, contra a destruição de largos setores da economia e contra o comportamento cínico do sedizente presidente Michel Temer, que agride o senso comum sobre gravíssimos fatos que exigem sua explicação.
As Forças Armadas, na defesa dos interesses mais caros do Brasil, também não deveriam calar sobre a condenação política do Almirante Othon, que tem relevantíssimos serviços prestados ao País, no desenvolvimento de tecnologia própria na produção de energia nuclear.
Deveriam se opor às manifestações indecorosas de convicções políticas por parte de juízes e procuradores, a desacreditarem as funções que exercem por delegação constitucional. Seria importante, ainda, que tivessem criticado a violência da destituição da Presidenta Dilma para satisfazer a ganância de atores políticos desqualificados.
A ameaça, porém, a instituições, em coro com forças do atraso, para reforçar a agenda politiqueira de um “combate à corrupção” com claros tons partidários, não lhes cai bem.
Das Forças Armadas se espera contenção e não imiscuição nos assuntos do governo civil. Seus profissionais são brasileiras e brasileiros e têm o direito de demonstrar sua preocupação, conclamando os poderes civis ao cumprimento de seu papel constitucional.
Não mais, nada de ameaças a sugerirem que existe um “plano” elaborado para intervirem com uso de força nas instituições! O ambiente político do País já está assaz tenso para que generais alarmistas coloquem em cheque o governo civil. Não é disso que precisamos nesta hora.
Mas, da mesma forma, não parecem adequadas reações acima do tom contra esse ou aquele oficial, estimulando reações corporativas da tropa.
O momento político é grave e impõe-nos esforço para não criar processos de violência irreversível na fragilizada conjuntura política.
Exijamos dos agentes do judiciário e do ministério público que se deem o respeito e desempenhem suas funções com discrição, dignidade e imparcialidade.Exijamos dos atores políticos que façam suas defesas dentro dos limites da ética profissional de seus advogados. É legítimo, também, que mostremos nossa indignação contra o atraso político, econômico, social e cultural que alguns políticos sem compromisso com a massa de excluídos do País e atores obscurantistas querem impor à sociedade.
Saíamos do sono de Bela-Adormecida e defendamos, agora, com veemência, nossas conquistas, nossos direitos e nossa democracia, sem descurar do esforço para que em 2018 tenhamos eleições como previsto no calendário constitucional.
Delas, temos que garantir, já hoje, que Lula possa participar, dado seu peso representativo e sua disposição de normalizar as relações entre as forças políticas hoje profundamente polarizadas. A preservação do ambiente institucional passa necessariamente por esse caminho e é disso que os comandantes militares têm que se convencer.
*Eugênio José Guilherme de Aragão (foto) é um jurista brasileiro que integrou o Ministério Público Federal de 1987 até 2017 e foi Ministro da Justiça em 2016, no governo Dilma Rousseff.
**Postado originalmente no Blog da Cidadania