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O monstro




Por Carlos Frederico Guazzelli*


Atribui-se a José Paulo Sepúlveda Pertence a seguinte frase, dita em discurso de despedida do cargo de Procurador-Geral da República, dirigindo-se ao então Presidente da República, José Sarney: “Assim como Golbery, eu também criei um monstro”. Ele aludia a outra famosa declaração, esta oriunda da eminência parda da ditadura, referindo-se ao Serviço Nacional de Informação, o famigerado SNI, que o general rio-grandino concebeu e instituiu como centro nervoso da chamada “comunidade de segurança e informação” – sistema montado para vigiar e reprimir os oponentes do regime, reais, potenciais ou imaginários.


Sepúlveda Pertence sabia bem o que dizia, com a autoridade de quem foi o primeiro chefe nacional do Ministério Público depois da redemocratização do país – e que, ademais, ajudara a traçar o novo desenho da instituição na Constituição de 88. É que o comportamento institucional do renovado parquet, desde os primeiros tempos da Nova República, já indicava o papel que viria a exercer nos anos seguintes – fiel à sua tradição conservadora, para não dizer reacionária. Mesmo assim, seria equivocado concentrar apenas nele os vícios e distorções, descortinados pelo ilustre jurista ainda no alvorecer de nossa jovem e precária democracia – os quais, na verdade, impregnam todo nosso sistema de justiça.


De fato, desde os tempos da Colônia, passando pelo Império e República Velha, e prosseguindo, depois da Revolução de Trinta e do Estado Novo, no período democrático entre 1946 e 1964, o Judiciário brasileiro sempre cumpriu seu papel legitimador da ordem desigual secularmente instituída no país.


Se é bem verdade que esta função estabilizadora do poder é mais ou menos inerente às instituições judiciais em toda parte, importa considerar que, no Brasil – lugar onde não se fez a revolução burguesa, como bem observado por Raymundo Faoro – elas a exerceram sempre atreladas aos interesses das oligarquias.


Também interessa lembrar que, ao menos até meados do século passado, a justiça não tinha maior protagonismo na nossa vida social e política. Muito diferente do que ocorre nos dias de hoje, de todos os poderes públicos formais, era de longe o menos importante, e seu campo de atuação era muito mais restrito. Os juízes criminais se ocupavam dos delitos dos pobres, cuja repressão sempre foi basicamente conduzida pelas polícias; e a justiça cível lidava com as questões de família, ou os conflitos em matéria patrimonial de uma camada pouco numerosa da população. A imensa maioria do povo brasileiro simplesmente não tinha acesso aos órgãos judiciários para a resolução dos litígios; a justiça era para ricos ou remediados.


Este quadro foi sendo modificado aos poucos desde o fim da Segunda Guerra, ao longo do processo de modernização autoritária então em curso, e que redundou na transformação do país, com a rápida e desorganizada urbanização, movida pela industrialização acelerada, concentrada nas regiões sul e sudeste do país. O surgimento de novos estratos médios urbanos, bem como de um ativo proletariado nas grandes cidades brasileiras, entre outros efeitos, acarretou a reorganização dos serviços públicos – e, dentre estes, os judiciais, que passaram a ser demandados por uma crescente e inédita clientela.


Assim, durante o período ditatorial que se seguiu ao golpe de estado de abril de 1964, o sistema de justiça brasileiro cresceu paulatinamente. Foi criada a justiça federal, para cobrar a dívida pública da União e julgar as causas previdenciárias; e a justiça militar federal foi encarregada de julgar os crimes políticos. Paralelamente, a chamada justiça comum (a dos Estados) e a justiça do trabalho foram sendo aos poucos interiorizadas, de modo que, ao final da ditadura, o país já dispunha de uma rede complexa de juízos e tribunais.


Isto significa que o número e a importância de magistrados – e também dos membros do ministério público, que seguiu na mesma esteira – aumentaram consideravelmente sob o regime ditatorial. Cabe recorrer aqui, mais uma vez, ao grande Faoro: as corporações judiciárias – aí consideradas também o parquet e todas as demais carreiras jurídicas – constituem o que ele designou, no seu clássico “Os donos do poder”, de estamentos burocráticos, organismos do alto funcionalismo público que, desde sempre, avançaram sobre o Estado brasileiro, ao ponto de hoje dele se terem apropriado de maneira quase absoluta.


Deve se destacar, a propósito, que o fortalecimento das burocracias judiciais, ocorrido durante o período ditatorial, foi a retribuição dos governantes ao comportamento institucional pusilânime de seus integrantes: salvo honrosas exceções, juízes, promotores e tribunais fecharam os olhos às violações criminosas praticadas pelos esbirros da ditadura, quando não as justificaram explicitamente. A começar, pela vergonhosa unção dos golpistas, praticada já na madrugada de 1º de abril pelo próprio presidente do Supremo Tribunal Federal, Ribeiro da Costa – o qual chegou ao cúmulo de declarar que “…o desafio feito à democracia foi respondido vigorosamente pelas Forças Armadas…” (sic).


Não admira pois que, em 1980, o último ditador, o general Figueiredo, conhecido por sua boçalidade, presenteasse os magistrados brasileiros com a edição da Lei Orgânica da Magistratura, a dita LOMAN, tão pródiga na concessão de benesses que vige até hoje – pois não se conseguiu ainda elaborar diploma legal que melhor atendesse à verdadeira sanha do estamento judiciário por mais privilégios. Mas o pior – ou o melhor, dependendo do ponto de vista – estaria por vir com o fim da ditadura.


Para bem compreender o caminho trilhado para fazer com que o sistema de justiça viesse a ocupar, em nossos dias, o centro da vida política nacional, convém atentar, primeiro, para o processo constituinte desencadeado nos anos de 1987 e 1988, o qual redundou, em outubro deste último, na promulgação da Constituição que inaugurou o novo período democrático no Brasil.


E, sobretudo, para a peculiar natureza da nova Carta, cujo texto foi o resultado engenhoso de dois impulsos opostos: de um lado, a forte pressão da sociedade civil brasileira, que emergiu da ditadura com novos sujeitos sociais, organizados sob demandas também inéditas; e de outro, a resistência das classes dominantes, que desembarcaram a tempo do último governo ditatorial, interessadas em fazer com que “tudo mudasse sem mudar” – para usar a máxima de Lampedusa.


Assim é que a Constituição-cidadã, como a denominou Ulysses Guimarães, de forma inovadora na nossa história constitucional, trouxe na sua abertura a declaração de direitos e garantias – individuais e coletivos, políticos e econômicos, sociais e culturais – da cidadania brasileira. Era o anúncio, já no pórtico do documento político e jurídico sob o qual se pretendia organizar a jovem democracia brasileira, de um novo pacto social. (É verdade, também, que deste contrato faziam, e ainda fazem parte cláusulas asseguradoras das velhas e novas formas de dominação; mas isso é outro assunto).


Os constituintes não se preocuparam apenas em instituir o rol de direitos: trataram, também, de criar os mecanismos institucionais para sua efetivação – constantes no capítulo da organização do Poder Judiciário, e das “instituições essenciais à função jurisdicional de estado” (ministério público, advocacia e defensoria pública). E nisso, justamente, residiu o grave erro político por eles cometido então, erro responsável pelos abusos vislumbrados, desde o início, pelo autor da frase que abre o presente artigo.


Efetivamente, foi simplesmente desastroso entregar a tarefa de efetivar os novos direitos individuais, coletivos e difusos – sem a cuidadosa criação de controles externos, de um verdadeiro sistema de checks and balances – a organismos secularmente marcados por seu perfil institucional francamente conservador, quando não abertamente reacionário. O resultado não poderia ser outro: a progressiva transformação do sistema de justiça brasileiro em uma nova barreira – hoje, a mais intransponível – contra a afirmação dos direitos mais elementares da ampla maioria dos cidadãos e cidadãs brasileiros: à liberdade, à saúde, à terra, ao trabalho, à educação, à cultura, i. e., à vida humana digna.


O processo desta transformação – que atingiu o auge na deposição ilegítima da Presidenta Dilma, e na instituição do regime de exceção sob o qual vivemos atualmente – merece ser melhor examinado, como se fará a seguir.

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*Carlos Frederico Barcellos Guazzelli, Defensor Público aposentado, coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014).


-Postado originalmente no site Sul21

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